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HORTA cidade noiva do mar

 

Quando, no final da década de sessenta, princípios da de setenta, fui estudante na Horta, era o navio “Ponta Delgada” que transportava os jovens das Flores para o Faial, cidade de tradições estudantis marcantes na época. E a aproximação lenta da ilha, o apito forte do pequeno navio, eram uma espécie de saudação à cidade, quando se entrava na baía calma do porto da Horta, depois de uma viagem de doze horas após a saída das Flores, com mar grosso e muito enjoo. Ainda hoje, numa vulgar ida ao Pico, numa confortável e moderna frota que faz o canal em menos de meia hora, o que vem à memória são as recordações das viagens em que o tempo era marcado pela lentidão daquelas doze horas de enjoo e saudade.

Hoje em dia, o Faial continua a ser uma ilha muito especial, toda ela graciosidade, que vive em função da sua cidade, a Horta, da beleza da sua pequenez e simultâneamente da grandeza de alma das sua gentes. O mar continua a ser porta de entrada e de saída desta terra de gente ordeira, pacata, gentil e diferente.

A marina é a porta de comunicação com a Europa e o mundo. A ela chegam, quase diariamente, iates das sete partidas deste mundo tão reduzido em que vivemos, trazendo um turismo muito particular que confere à cidade o toque cosmopolita, que se nota, aliás, um pouco por todo o lado, numa terra onde não morreram as tradições de que os faialenses continuam orgulhosos.

Um aeroporto bem dimensionado, em fase de ampliação, é porta de entrada e saída de milhares de passageiros/ano. A Tap, que começou por escalar aquele aeroporto duas vezes por semana, ampliou significativamente o tráfego de/e para a ilha. Situada no triângulo, estrategicamente preparada para apoiar as ilhas mais pequenas, o Faial conhece de cor a arte de bem receber. Em frente a esta cidade tão particular, ergue-se a imponência da montanha do Pico, qual quadro pintado a óleo e colocado a preceito na parede da ilha vizinha por um pintor sensível e louco, para dar ao Faial um último toque de charme que transformam o nascer e pôr de sol de cada dia, e ambas as ilhas, uma aventura no seio da beleza perfeita, única e sempre irrepetível.

Famosos desde sempre são ainda o café “Volga” e o “Internacional”, cada um o seu estilo, que se mantém imutável desde os anos setenta: o “Volga” era tradicionalmente o café dos estudantes, o encontro informal, da hora do estudo ou do recreio. Os mais velhos discutiam no “ Internacional” as questões culturais duma época de heróis sem rosto definido. Uns passos mais à frente, sobranceiro ao mar, um dos cafés mais conhecidos do mundo, faz já parte dos roteiros turísticos internacionais e constitui ponto obrigatório de paragem, dando vida a um circuito quase imaginário. O “Peter” com a originalidade que foi conferida ao seu gin tónico, dá um toque de preciosidade e de mistério às vivências que parecem quase estranhas à cidade. Contíguo a este café, um museu e uma loja de vendas trazem à tona histórias de encantar com capitães corajosos que, a bordo de pequenos iates, cruzaram os mares à procura de coisas novas e, sobretudo de aventura. Trabalhos em osso de baleia e marfim completam um quadro de recordações únicas de um passado de homens do mar e baleeiros, cuja coragem e arrojo já não cabem na nossa modesta capacidade de imaginar e sonhar coragem, neste século em que o nosso sonho foi secundarizado e adormecido pela velocidade dos aviões cada vez mais sofisticados e os nossos mares atravessados por transatlânticos construídos para oferecer prazer em cruzeiros de luxo aos portos do Mediterrâneo.

As colecções particulares do Peter, um dos homens mais famosos nas ligações da Horta com os turistas do mar, está patente aos ohos dos apreciadores de arte. Verdadeiro património cultural do Faial, é este café ponto de encontro de homens do mar e da terra. Um local onde se pode aprender e ensinar em todas as línguas. A meio do século o Faial é sacudido por violentos sismos e pelo rebentar desvairado de um vulcão no lugar dos Capelinhos. Mares de lava fervente destruíram casas e terras e devastaram os arredores de uma povoação próspera, deixando a população em pânico por dias, semanas, meses... Sem os recursos hoje existentes para fazer face a grandes calamidades, os meses que se seguiram foram de grandes dificuldades para os sinistrados e para as autoridades locais.

Incrementou-se uma política de emigração, o que levou a que, a maior parte das famílias fortemente afectadas pela catástrofe, tivessem emigrado para os Estados Unidos. Foi a solução encontrada para dar novo rumo àqueles que, despojados dos seus haveres, viam promessa do reencontro do património perdido em terras do tio Sam, donde vinham notícias que falavam da fartura e bem estar. Para trás ficava a saudade e a dor duma partida quase inevitável, numa altura em que avaliar o sofrimento não era uma prioridade essencial, face à necessidade premente de assegurar a sobrevivência. Criticável ou não, a política então seguida terá sido boa para quem emigrou, embora tivesse deixado na ilha um vazio de gente. Nos locais que a lava roubou à terra, está hoje uma paisagem diferente, negra, quase assustadora e um museu que exibe pedras vulcânicas de recorte caprichoso e invulgar originalidade.

A cidade da Horta foi, no decurso dos anos sessenta/setenta, uma cidade cultural marcada por elites: eram frequentes os chás-canasta em longos serões, nas casas de famílias de nomes sonantes da sociedade de então, que privavam em festas de grande requinte na Sociedade Amor da Pátria, ex-libris da cidade, onde o acesso aos sócios era sujeito a uma triagem muito rígida. Nesse magnífico edíficio realizava-se o baile de gala do sábado de Carnaval e o baile de fantasias na segunda-feira, onde, em grupos, as famílias mais importantes apresentavam, em desfile original, fantasias de grande requinte. Ainda hoje, este magnífico salão de festas mantém a tradição de só abrir as suas portas a actividades de um certo vulto. Mas a cidade da Horta, mais que qualquer outra dos Açores, na época, foi marcada por acontecimentos culturais de grande interesse: o “Arauto” era um jornal do Liceu, dirigido pelos estudantes que faziam teatro e música.

No ginásio do liceu faziam-se bailes, espectáculos e outras manifestações culturais. Em épocas mais ou menos fixas, faziam-se os bailes do “Artista”, do “Atlético” e do “Fayal Sport Club”, sempre animados por conjuntos musicais de jovens músicos. Praticava-se bastante desporto e o Estádio da Alagoa servia a imaginação e o passeio de fim de semana para encontros interditos. 

O coreto da Praça da República serviu de palco a muitos concertos das muitas filarmónicas que animavam serões de festa em que a volta completa à praça, com rapazes dum lado e raparigas do outro, bastavam para que a festa se cifrasse num sucesso. Semanalmente o teatro Faialense abria as suas portas a um filme e, esporádicamente, a espectáculos organizados pelos jovens. Hoje, encerrado por precaridade das instalações que necessitam de completa remodelação, aguarda-se que, rapidamente a autarquia da Horta, manifestamente interessada na recuperação deste edifício património, desbloqueie as verbas necessárias para que as portas do velho teatro voltem a abrir-se.  Em termos paisagísticos a Horta exibe a sua Caldeira como referencial e a quinta de S. Lourenço que, no passado, reunia multidões em noites de S.  João. As praias de areia negra e fina completam uma tela que tem sempre o mar como ponto de referência. Mas a Horta recebe com qualidade e requinte.  As unidades hoteleiras só têm o defeito de serem parcas para a procura, mas o Hotel Fayal tem o charme que lhe é conferido pelo próprio edifício em si mesmo e pela qualidade do serviço que é ali prestado por profissionais de inegável qualidade. A Estalagem de Santa Cruz oferece um encontro com o passado onde qualquer história podia ser verdade. Autêntico Paço Real, com vista sobre o mar, as suas pesadas portas de madeira abrem-se ao sonho da mais pura tradição monárquica.

No miradouro da Senhora da Guia, está a Horta aos nossas pés. Lá em baixo, pelos passeios largos duma cidade arquitectonicamente bem dimensionada, passeia-se a gentileza em gente gira e bem vestida, como é tradição de uma das cidades com o melhor pronto a vestir da Região.

A antiga Colónia Alemã é hoje sede de uma série de departamentos do governo Regional dos Açores ali instalados, e ainda do Conservatório Regional
da Horta. Ao lado, o edifício da Assembleia Legislativa Regional, edifício moderno e construído com o rigor das modernas tecnologias, confere à cidade o “grau académico” de cidade do futuro onde se tomam as grandes decisões políticas de carácter legislativo.

Servida por um hospital que vai crescendo todos os dias ao ritmo das necessidades e que dá grande apoio aos centros de Saúde das ilhas das Flores, Corvo e Pico, os serviços vão-se autonomizando com novos técnicos e mais médicos e com a abertura de novas valências. E assim cresce a cidade e o movimento que nela se gera.

A Casa de Infância de Santo António foi, durante anos, a casa que recebia para educar até ao 9º ano, em regime de internato e não só, jovens de todas as ilhas e ainda crianças abandonadas ou de famílias de parcos recursos, aliás sua primeira vocação. Muitas mulheres de hoje têm em comum o facto de terem sido educadas em Santo António por religiosas Franciscanas, que eram verdadeiras zeladoras da integridade moral e física das jovens que tinham a seu cargo. Férreas disciplinas celestes eram impostas numa casa que dava prioridade à educação religiosa e onde a missa e a recitação do terço eram uma obrigação diária. Aquilo que, na altura, provavelmente nos irritava um pouco a todos, acaba por ser hoje um dado referencial da nossa juventude com alguma graça. A casa lecciona hoje, com mais seculares que religiosas, o ensino pré escolar e o 1º ciclo do ensino básico em regime semi-privado, mas já com intervenção da Secretaria Regional da Educação e Assuntos Sociais, o que veio abrir o leque de acessos e desdramatizar a altura dos portões de pedra, pintados de branco. A Direcção é composta por pessoas da comunidade que se têm empenhado pela continuidade da escola.

Agosto recebe a Semana do Mar, festa maior da cidade, que atrai turistas do Mundo inteiro e emigrantes da ilha em romagem de saudade. No final dessa semana de cultura, artesanato, folclore, gastronomia e tudo o que há de bom para ver e fazer, com o fogo de artifício na baía , a ilha renova-se no esplendor da festa que nunca acaba, numa cidade que o mar conquistou e possui.  As mulheres da fruta, do bolo de milho e das ilusões que a lancha do Pico deixa todas as manhãs em cima do cais, dão à cidade a cor e a graça. O Mercado Municipal e verdadeiramente o ponto de encontro para a conversa informal ou para o mexerico mais subtil e saudável. É aí que, em cada manhã, com ou sem sol, a vida acontece em uva fresca, maçã quase azeda, papia estaladiça ou pedaço gostoso de abóbora menina.

Nos museus da cidade está patente um passado em que a arte sacra marcou um espaço de grande importância e os trabalhos de mãos, patenteados num museu onde a graciosidade e a perfeição dos trabalhos de miolo de figueira e escamas de peixe, vão perpetuar o nome de D. Albertina Andrade, distinta senhora que leccionou durante anos no Liceu da Horta a disciplina de Trabalhos Manuais, e que emprestou a arte dessas mãos fantásticas à confecção de trabalhos de grande requinte que constituem um património único no Mundo. Pela sua casa, passaram gerações de homens e mulheres, zelosamente guardadas por ela e suas irmãs, D. Delmira e D. Maria, que fizeram das suas vidas uma entrega aos filhos dos outros. Eu própria fui hóspede destas senhoras de quem gardo as mais doces recordações. Isto é o Faial. Uma das cidades mais graciosas do Mundo, onde a paz ainda é possível e onde o tempo se pode medir com a calma suficiente para não ter necessidade de adiar quase nada. O Faial onde, todos os dias, a vida acontece. O Faial onde o passado está vivo, o presente renova a esperança e o futuro é uma certeza.

 

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